Benzetacil é o único que ultrapassa a placenta e pode curar feto infectado. Dificuldade na compra ocorre desde 2012; falta matéria-prima, diz produtor.
Sem receber penicilina benzatina – popularmente conhecida pelo nome comercial Benzetacil – desde o primeiro semestre de 2014, o Distrito Federal registrou 269 casos de sífilis congênita em um ano. O medicamento é o único que ultrapassa a placenta e consegue tratar bebês, evitando que o feto pegue a infecção da mãe e nasça com más-formações que podem afetar os sistemas neurológico, cardíaco e hepático. O preço da ampola em farmácias é de pouco mais de R$ 1.
De acordo com a Secretaria de Saúde, a dificuldade para comprar o remédio começou ainda em 2012. Cinco pregões já foram cancelados e, mesmo em caráter emergencial, dois editais não receberam propostas. Os quatro laboratórios produtores alegam falta de matéria-prima. A situação começou a atingir outras unidades da federação nos últimos meses, e o Ministério da Saúde disse que o abastecimento deve ser normalizado em até duas semanas.
A diretora de Assistência Farmacêutica, Gláucia Carvalho, afirma que a falta generalizada dificulta até mesmo empréstimos entre o DF e outros hospitais públicos. Segundo ela, o fato de os editais previrem volumes maiores, por atenderem toda a rede pública, também influencia na situação.
“Os processos, eles continuam sendo abertos, mesmo que dê deserto, para a gente mostrar que a gente não está ‘fazendo nada’ em relação a isso. A gente continua abrindo processos e aguardando o mercado responder. Mas, por enquanto, não consegue”, afirma. “Só vai apresentar proposta aquele fornecedor que tiver o medicamento [em grande quantidade] para atender, porque, se ele não atender a nossa demanda depois de ela fechada, ele pode ser multado, ele vai sofrer sanções.
A doença é provocada pela bactéria Treponema pallidum, transmitida geralmente em relações sexuais por meio de pequenas lesões na pele e em mucosas. Dados da Organização Mundial da Saúde apontam que 25% das grávidas que têm a doença sofrem aborto espontâneo ou dão à luz bebês natimortos.
O último boletim epidemiológico da doença destaca o aumento anual de casos detectados no DF e chama atenção para o fato de ela ser 100% evitável. A preocupação consta ainda em um relatório antigo do Conselho de Saúde. “A sífilis congênita é passível de prevenção, e admitir que crianças nasçam com esta doença é no mínimo um descaso à saúde pública do DF”, diz o texto.
Chefe da Diretoria de Ciclos da Vida e Práticas Integrativas em Saúde, o médico Fernando Ribeiro de Barros afirmou que a Secretaria de Saúde estuda a retomada de um plano criado no ano passado. Não há previsão de campanhas de conscientização.
Em uma circular divulgada em 28 de janeiro, a pasta comunica os profissionais sobre o problema e os orienta a administrar medicamentos alternativos – azitromicina e a ceftriaxona. As opções encarecem o tratamento em até 20 vezes, além de terem menor eficácia e exigirem mais aplicações, diminuindo a adesão de pacientes. O vice-presidente do Sindicato dos Médicos, Carlos Fernando da Silva, critica a situação.
“A falta de medicamentos é um problema de gestão crônico na Secretaria de Saúde do DF. Do ponto de vista da assistência ao paciente é pior deixar de medicar do que usar medicamentos que sejam de segunda ou terceira escolha”, afirma. “O que ocorre é que os medicamentos de primeira escolha são os de consenso porque apresentam maior taxa de sucesso. No caso de uso dos alternativos, que não têm o mesmo desempenho do medicamento de primeira escolha, o tratamento acaba sendo mais demorado, porque é necessária maior atenção aos pacientes.”
Entre 2008 e 2013, o número de bebês que morreram por causa da sífilis congênita quase triplicou no país. O Brasil assinou um pacto mundial com a Organização Mundial de Saúde de erradicação da sífilis congênita até este ano.
Para o presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia, Érico Arruda, é possível que o objetivo não seja atingido. “Certamente com esse desabastecimento estaremos muito longe de cumprir essa meta”, declarou em entrevista ao Fantástico.
Também ao Fantástico, o secretário de Vigilância à Saúde do Ministério da Saúde, Jarbas Barbosa, disse que o problema não se limita ao Brasil. “No mundo inteiro a oferta da penicilina benzatina, desde o segundo semestre do ano passado e todo o primeiro semestre desse ano, tem sido muito menor do que costumava ser. Hoje nós estamos já perto de voltar a ter a produção do que seria a necessidade mensal.”
Segundo o Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos no Estado de São Paulo, que representa boa parte das indústrias farmacêuticas do Brasil, a interrupção do fornecimento dos insumos para a produção foi repentina, o que originou o problema. Em um documento da Organização Mundial da Saúde de 2005 sobre o controle de infecções, a situação já foi citada.
“Nos últimos tempos, tem havido problemas tanto em relação à disponibilidade quanto em relação à qualidade da penicilina benzatina ao redor do mundo. Em muitos países, essa medicação é escassa, e frequentemente está indisponível por períodos prolongados. Ainda mais preocupante, a qualidade da medicação é altamente variável”, afirmava a entidade.
Monitoramento
O Ministério da Saúde recomenda que todos os recém-nascidos com mães que tenham sífilis passem por investigação. A medida vale também para os bebês de grávidas tratadas com Benzetacil, já que estudos indicam falha no tratamento em 14% dos casos.
As crianças devem ser submetidas a exames como hemograma, radiografia de ossos longos e punção lombar. As consultas ocorrem mensamente pelo menos até o sexto mês; depois e até completar um ano, o bebê deve ser avaliado bimestralmente.
Paralelamente, os recém-nascidos passam por teste para avaliar a presença da bactéria com 1, 3, 6, 12 e 18 meses. Caso dois exames consecutivos apontem a ausência do micro-organismo, a criança é liberada. Se isso não ocorre até o 1,5 ano, o bebê é reinvestigado.
“Caso sejam observados sinais clínicos compatíveis com a infecção treponêmica congênita, deve-se proceder à repetição dos exames sorológicos”, diz a Secretaria de Saúde do DF. “Recomenda-se o acompanhamento oftalmológico, neurológico e audiológico das crianças com diagnóstico de sífilis congênita semestralmente, por dois anos.”
Fonte: G1