Segundo disposição constitucional, compete ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) a última palavra em matéria de legislação infraconstitucional, uniformizando sua interpretação. Nesse sentido, é de grande importância o recente julgamento do Recurso Especial nº 2.093.778/PR, ocorrido em 18/06/2024, mantendo decisão do TRF4 que considerou irregular o transporte ofertado pela Buser, no autodenominado “fretamento colaborativo”.
No acórdão do STJ foi feita densa análise do mérito da questão e o relator, Min. Mauro Campbell Marques, apontou que o serviço ofertado pela Buser “implica, na realidade, a prestação irregular de serviço de transporte rodoviário de passageiros.”
As novas tecnologias não são um salvo-conduto que permitam ignorar o ordenamento jurídico vigente. Como alertou o Min. Campbell Marques, “o que vejo, nas circunstâncias do caso, (…), é o abuso das vantagens decorrentes da inovação tecnológica, mormente na complexa realidade brasileira (…).”
Os defensores do modelo de “fretamento colaborativo” argumentam com o livre exercício de atividades econômicas previsto no parágrafo único do art. 170 da CF e com a vedação à adoção de restrição a novas tecnologias da Lei de Liberdade Econômica. (Lei n° 13.874/2019). Ocorre que a interpretação das leis não se faz com lupa. O ordenamento jurídico é um sistema regras e princípios que deve ser interpretado de modo coerente e harmônico. E assim o fazendo, não é difícil ao intérprete menos enviesado entender por qual razão a atividade econômica denominada fretamento depende de regulação para seu exercício: para proteger os usuários e evitar a concorrência desleal com o serviço público de transporte coletivo.
Ainda nesse sentido, o intérprete deve analisar os diplomas em seu conjunto e evitar intepretações apenas com base em um único dispositivo. Não muito longe do art. 170 da Constituição Federal, seu art. 175 é claro em dispor que o Estado, na forma da lei, prestará serviços públicos, diretamente ou por concessão ou permissão.
O transporte coletivo é um serviço público, qualificado como um direito social, prestado em regime orientado pela regularidade, continuidade, modicidade e controle tarifário, atendimento a gratuidades, dentre outros. Assim, o sistema de transporte público coletivo pressupõe a compensação entre ligações superavitárias e deficitárias.
O fretamento é o serviço de transporte privado que não admite cobrança individual de passagem e não é aberto ao público. Logo, não é balizado pelos princípios do serviço público. Seu objetivo é o resultado econômico, de modo que somente as ligações com alta procura são ofertadas, com liberdade de preço e sem atender benefícios tarifários. Trata-se de atividade econômica em sentido estrito, livre à iniciativa privada, mas sujeita à autorização e regulação estatal, como decorre da parte final do parágrafo único do citado art. 170 da Constituição Federal.
Além de desatender ao quadro normativo vigente, defender a concorrência entre o fretamento e o transporte público coletivo significa romper o equilíbrio dos sistemas de serviço público de transporte coletivo, levando-os à inviabilidade.
Se o fretamento é explorado como serviço de transporte público, ou seja, com ligações ou linhas constantes, aberto ao público e com venda individualizada de passagem, desnatura-se a atividade e se instaura concorrência desleal e ruinosa com o transporte público. Foi exatamente isso que considerou o STJ na citada decisão do Recurso Especial nº 2.093.778/PR.
Igualmente não se pode usar de comparações artificiosas para justificar o modelo de “fretamento colaborativo”. O STF julgou o tema 967 concernente ao Uber, o qual não guarda identidade com o modelo Buser. Isto porque não há identidade de regime entre o transporte público coletivo (serviço público) e o transporte individual de passageiros (atividade econômica de utilidade pública). O transporte individual é atividade privada e não está expressamente previsto na Constituição Federal, enquanto o transporte coletivo regular é constitucionalmente consagrado como serviço público em todas as esferas.
A decisão do STJ é paradigmática. Afinal, há de se imaginar o que poderia acontecer se uma empresa de tecnologia começasse a vender passagens aéreas entre São Paulo, Rio de Janeiro ou Brasília em aviões privados, que decolassem e aterrissassem em pistas clandestinas ou improvisadas, como acontece com os ônibus de empresas do autointitulado “fretamento colaborativo”.
Rodrigo Matheus
Mestre em Direito do Estado pela PUC/SP. Membro da Comissão de Direito Administrativo e da Comissão de Estudos de Infraestrutura do IASP.
Fernando Dias
Advogado, formado pela PUC/SP, com pós-graduaçao pela FGV, LL.M pela University of Virginia, Mestrando da Universidade de São Paulo