Mesmo tendo decretado estado de emergência por causa do desabastecimento na rede, o Distrito Federal já empenhou neste ano R$ 92,1 milhões a mais em vigilância, limpeza e alimentação de hospitais e outras unidades da rede pública de saúde do que para compra de medicamentos. Há atualmente estoques zerados de 73 remédios – incluindo antibióticos usados no tratamento contra sífilis, toxoplasmose, tétano, meningite e inflamações no coração.
Desde janeiro foram empenhados R$ 246,5 milhões com serviços de manutenção de hospitais e unidades da saúde; para remédios, foram R$ 154,4 milhões (veja tabela). O governo alega que problemas herdados da gestão anterior, dificuldades no trato com fornecedores e orçamento subdimensionado influenciam no quadro.
O diretor do Fundo de Saúde do DF, Ricardo Cardoso, reconhece estar investindo “muito caro e muito mal” em vigilância, limpeza e alimentação. “Temos uma situação de pagar mais caro para isso por quê? Pelo fato de não ter os contratos regulares. Não tínhamos nem contrato no início do ano, foram feitos alguns contratos emergenciais, e o fato de você não ter contratos regulares, de você não fazer uma licitação regular, você não consegue aumentar a concorrência, reduzindo o preço. Então os contratos de vigilância e limpeza na secretaria são mais caros do que em outros órgãos do próprio governo.”
O deputado distrital Rodrigo Delmasso (PTN) afirmou que vai solicitar que o secretário de Saúde, João Batista de Sousa, explique a disparidade entre os gastos. O G1 pediu entrevista com o gestor, mas só teve acesso ao diretor do Fundo de Saúde.
O parlamentar também disse que fará uma vistoria nas unidades de saúde para mapear os principais problemas. “Não quero dizer que vigilância e limpeza não sejam importantes, mas foram gastos R$ 100 milhões a mais do que com remédios. Gasta-se mais com limpeza e segurança do que com remédios. Enquanto isso, a gente tem hospital que infelizmente ainda está sem medicamentos e a população está extremamente desassistida.”
Dados da Secretaria de Saúde mostram que, entre 1º de janeiro e 10 de julho, o DF recebeu 332 notificações judiciais para fornecimento de remédios – média de 1,7 ação por dia. A pasta afirma estar organizando um mutirão para comprar doses de todos os 850 medicamentos preconizados e sanar a falta de insumos na rede.
O advogado Gustavo Pessoa Dantas, de 30 anos, não conseguiu pegar insulina glargina – usada diariamente no controle da diabetes – nos dois primeiros meses do ano. Morador de Águas Claras, ele lida com a doença desde os 10 anos e precisou comprar o medicamento. As doses suficientes para 30 dias custam cerca de R$ 480.
“Em março a situação se regularizou, mas ainda assim acho preocupante. Eu busco na Policlínica de Taguatinga todo mês, e sempre que vou fico pensando se vou ou não encontrar o remédio”, conta.
Uma leitora do G1 também narrou dificuldades para ter acesso a um medicamento. O filho dela toma Somatropina para reverter problemas de crescimento. Falhas no fornecimento deixaram a criança quatro dias sem remédio.
O diretor do Fundo de Saúde, Ricardo Cardoso, disse que o DF deve receber R$ 18 milhões do governo federal até o fim da semana para a compra de insumos. “É o suficiente? Não. A previsão da secretaria de necessidades, em função da situação de desabastecimento que foi encontrada no início deste ano, era de R$ 257 milhões para poder abastecer a rede [só com medicamentos].”
“Agora, o desabastecimento envolve fatores que muitas vezes não são relativos apenas à questão orçamentária. Tem empresas que chegaram a falar que não iam fornecer para a secretaria porque nós estamos devendo despesas de 2014. Isso ainda é uma realidade. O governo tem dívida. Nós já pagamos R$ 25 milhões de dívidas e estamos continuando a fazer pagamentos de despesas de exercícios anteriores”, completa.
Tem mais dinheiro, mas tem greve
O investimento maior em vigilância, limpeza e alimentação – R$ 246,5 milhões – não impediu que a rede enfrentasse paralisações. Responsável por fornecer 25 mil refeições diariamente às unidades de saúde (a única não contemplada é o Hospital Regional de Santa Maria, que é abastecida por outra empresa), a Sanoli parou duas vezes neste ano.
A organização aguardava na sexta-feira o pagamento de R$ 12,5 milhões referentes aos serviços executados entre 22 de maio e 21 de junho. Além disso, afirma ter R$ 21,4 milhões a receber do governo de dívidas de 2014.
“Buscamos estender pelo maior período possível nossa capacidade de servir, ao menos, pacientes. Entretanto, com a quantidade de matéria-prima base para o preparo das refeições muito reduzida, suspendemos a alimentação oferecida a servidores e acompanhantes. A intenção sempre é preservar as pessoas internadas”, completou.
Vigilantes e serventes de limpeza também relatam atrasos e já fizeram, cada um, uma paralisação neste ano. Os primeiros somam 2.540 trabalhadores. Os segundos, 3 mil, com salário médio de R$ 980. Presidente do Sindicato dos Empregados de Conservação, Asseio e Serviços Terceirizados do DF, Maria Isabel Caetano Reis diz que a situação já foi pior.
“Depois da saída de algumas empresas dos contratos, ficou melhor em relação ao ano passado. As empresas que prestam serviço nos hospitais não estão dando tanto problema agora”, afirma.
O diretor do Fundo de Saúde, Ricardo Cardoso, diz que o DF estuda ainda recalcular a quantidade de funcionários nas duas áreas para fazer a licitação. Somente em vigilância, por exemplo, a Saúde paga R$ 1,2 mil por cada trabalhador do que as outras secretarias. O orçamento inferior ao do ano passado e os rombos no caixa dificultariam, no entanto, que o certame seja realizado de imediato.
A ideia, de acordo com o gestor, é conseguir a realocação de recursos de outros órgãos do GDF para dar início aos procedimentos. Além disso, há a intenção de que esses grandes contratos sejam centralizados na Secretaria de Gestão Administrativa, permitindo economia de escala ao governo.
Equívoco de prioridades
O presidente da Comissão de Bioética da OAB, Felipe Bayma, disse ao G1 ter levantado uma série de deficiências na área. Para tentar contornar o problema, cinco advogados acompanham as atividades da Secretaria de Saúde desde que o DF divulgou o plano de ação para combater a proliferação de superbactérias – que tem como pilares o fornecimento de remédios, reforço na higiene e incorporação de farmacêuticos às equipes.
“Foi pactuada uma parceria entre OAB e Secretaria de Saúde, vamos participar efetivamente para tentar agregar alguns valores e criar soluções viáveis. [Já sabemos que] A prioridade dos gastos às vezes é um tanto equivocado. Os materiais comprados pela Secretaria de Saúde são deficientes, e isso eles assumem no próprio documento. Falta de treinamento, falta de melhor gestão dentro dos hospitais; são várias deficiências, são inúmeras as deficiências”, afirmou.
Outros problemas, segundo ele, estão relacionados à falta de leitos e à falta de profissionais. Para Bayma, as dificuldades são reflexo do rombo deixado pela gestão anterior – a Secretaria de Saúde calcula déficit de R$ 720 milhões em relação a 2014.
Especialista em administração pública, o professor Jorge Pinho discorda e critica a postura do Executivo. “A herança não justifica o descontrole. Acho que há mais falta de uma boa gestão do que qualquer outra coisa. Não vejo nesse governo os atos que lesam a sociedade como vi nos outros, mas a capacidade de gestão, a boa gerência da coisa pública, também não vejo, não.”
Pinho defende um uso mais racional do que se recebe por meio do Fundo Constitucional e do que se arrecada com impostos para tentar equalizar o problema, além de planejamento para saber no que se deve investir.
“Quem recorre à coisa pública é menos afortunado e, também, por ser menos dotado, o que tem menos capacidade de fazer barulho. Há até um certo conformismo”, completa. “O cara esquece que está pagando imposto por tudo. Qualquer coisa que ele coma, beba, use, ele está pagando imposto de circulação de mercadoria. Ele não tem Imposto de Renda por ter renda baixa, mas em compensação tem todos os outros impostos que são cobrados.”
O diretor do Fundo de Saúde, Ricardo Cardoso, nega que a disparidade entre os gastos tenha relação com a falta de remédios. “Não tem nenhum processo de medicamento parado por falta de orçamento. A gente precisa, lógico, redimensionar esses contratos que não são área fim. Entendo que as contratações desse tipo de despesa não deveriam estar no âmbito da Secretaria de Saúde. A Secretaria de Saúde deveria comprar só o que é finalítico, medicamento, material médico, contratação do serviço de manutenção de equipamentos.”
Fonte: G1 Df