A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 171/93, que reduz a maioridade penal de 18 anos para 16 anos, tramita na Câmara há 20 anos, sem nunca conseguir avançar. Na terça-feira (31), no entanto, isso mudou. Deputados da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara consideraram que a PEC não contraria a Constituição. Agora, o texto seguirá para uma comissão especial e, se novamente aprovado, irá à votação em dois turnos no Plenário.
O texto é polêmico e revoltou deputados ligados à defesa dos direitos humanos, como adeputada Erika Kokay (PT-DF). Em entrevista a ÉPOCA por telefone, Kokay disse que levar adolescentes para as prisões não resolve o problema da violência. “Há a invenção de uma narrativa que diz que a culpa da violência é dos adolescentes. Isso não é verdade. Eles são muito mais vítimas do que vitimizadores”, diz. A deputada afirmou que pretende entrar na Justiça contra a tramitação da proposta, que segundo ela é inconstitucional.
ÉPOCA – Por que não reduzir a maioridade penal para 16 anos no Brasil?
Érika Kokay – Pergunte a qualquer pessoa neste país e ela vai dizer que o sistema prisional não recupera. O sistema tende a aprofundar a vida em conflito com a lei. Hoje, o nosso sistema prisional tem um nível de reincidência de mais de 70%. Ao passo que as medidas socioeducativas têm uma reincidência bem menor, em torno de 20%. Se nós partirmos do pressuposto que é preciso responsabilizar e ao mesmo tempo impedir o conflito com a lei, o sistema prisional não é a solução para quem tem 16 anos.
ÉPOCA – Como impedir que os adolescentes cometam crimes se eles não forem punidos?
Kokay – Não é verdade dizer que não há responsabilização. Nós responsabilizamos as pessoas em conflito com a lei a partir dos 12 anos. O adolescente pode cumprir até nove anos de medidas socioeducativas, são três anos para cada medida. Esse discurso da redução da maioridade é na verdade uma construção, uma cortina de fumaça para tentar esconder aincompetência e a negligência dos gestores, tanto muninicipais, estaduais e da União.
Há a invenção de uma narrativa que diz que a culpa da violência é dos adolescentes. Isso não é verdade. Eles são muito mais vítimas do que vitimizadores. Os adolescentes entre 16 e 18 anos foram responsáveis por apenas 0,5% dos homicídios cometidos no país. Eles entram em conflito com a lei majoritariamente por crimes contra o patrimônio, porque vivemos em uma sociedade que diz que é preciso consumir para ser respeitado. Só que essa mesma sociedade não dá o direito de consumir para todos. Em vez de tentar resolver as verdadeiras causas da violência – a inoperância dos gestores, falta de prioridades, ausência de políticas públicas -, estamos discutindo essas soluções fast food, que não resolvem nada e apenas anestesiam a sociedade.
ÉPOCA – Um dos argumentos para reduzir a maioridade penal é que muitos menores acabam trabalhando no tráfico justamente porque não recebem as mesmas penas que os adultos.
Kokay – Aí você vê a incoerência da Câmara. Recentemente, a Câmara aprovou oagravamento da pena para adultos que usam adolescentes para entrar em conflito com a lei. Outra medida tipificou como crime quem vende bebidas alcoólicas a menores. Mas se a maioridade penal é reduzida, não será mais possível responsabilizar o adulto por esses crimes. O adulto utiliza o adolescente, mas só o adolescente é punido.
ÉPOCA – Na sua opinião, a PEC tem chances de ser aprovada no Congresso?
Kokay – Eu espero que não. Essa discussão não é nova. A novidade, o caráter inédito, é que ela não é movida por um fato. Via de regra, esse tipo de debate surge quando há uma comoção social por um atentado à vida – e, diga-se, diminuiu o número de adolescentes que atentam contra a vida, quase pela metade. Então é uma construção, um ataque contra o Estado democrático de direito. Do nosso ponto de vista, a maioridade penal é uma cláusula pétrea na Constituição. Ela foi expressamente estabelecida pelo constituinte, que a assegurou como uma garantia dos direitos individuais. Se o Parlamento aprova essa PEC, e portanto passa a não considerar mais a maioridade penal como cláusula pétrea, amanhã ela pode ser reduzida para 14 anos, 12 anos, 10 anos. Nós já escutamos parlamentares dizendo que tem pessoas que nascem para matar, como se as pessoas já nascessem em conflito com a lei. Então você cria uma lógica fascista, não-reflexiva, pautada no fundamentalismo penalista. Por isso, nós devemos recorrer ao judiciário para impedir a tramitação dessa PEC.
Fonte: Bruno Calixto, Revísta Época