Não é preciso viajar à Disney para ser afetado pela alta da moeda americana; ela atinge todos, mesmo quem nunca viu uma nota de dólar na vida.
Não é preciso viajar à Disney para sentir os efeitos nocivos da valorização do dólar. Mais cara, a moeda americana afeta a vida de todo mundo – até de quem nunca pegou em uma cédula verde e leu “In God we trust”. Em uma reação em cadeia, o dólar tem impacto direto e indireto sobre o preço de produtos do cotidiano de gente comum, do pão francês à aspirina, do milho ao desodorante, da carne ao celular.
A padaria é um exemplo emblemático desse fenômeno. Nada menos que 95% do custo de produção do pãozinho vem da farinha de trigo, boa parte dela importada de outros países, como Argentina, Uruguai e Paraguai – e a moeda de transação para os negócios globais é inevitavelmente o dólar. Para o padeiro que tira o lápis de trás da orelha e coloca as contas no papel, a lógica é simples: aumenta o valor do dólar, aumenta o preço do pão – e do sanduíche, do pão doce, do pão de queijo, do salgadinho… Praticamente tudo o que é vendido em uma prosaica padaria fica mais caro no momento do tal “nervosismo dos mercados” – como o que viveu o Brasil ao longo da última semana, quando o dólar passou de 4 reais, marca que nunca tinha sido ultrapassada desde a criação do real.
Explica Joaquim Duarte Pereira, dono da padaria Rodésia, na zona oeste de São Paulo: “Nós distribuímos o aumento nas outras mercadorias para não subir tudo em único produto. Com esse dólar, nós vamos repassar. Não tem jeito”, afirma. “Mas nós temos procurado segurar, senão aumenta toda semana”. No seu estabelecimento, o preço do pão francês já ficou 40% mais alto desde o início do ano, acompanhando a alta de 30% do preço da farinha de trigo.
A situação é a mesma na Padaria Natália, também na zona oeste paulistana. Marcelo Martins de Oliveira, um dos proprietários, tentou absorver o aumento das despesas para não perder a clientela, mas não conseguiu fazer isso por muito tempo. Em abril, o preço do quilo de seu pão passou de 11,90 para 12,40 reais. “Já procuramos fornecedores mais baratos, mas não dá para diminuir a qualidade, senão o consumidor foge para o supermercado”, diz. “Agora, vamos ver como vai ficar. É possível que tenha mais um aumento nos próximos meses.” Segundo ele, cada saco de farinha passou de 97 para 105 reais. São necessários vinte deles a cada quinze dias.
De acordo com o presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Biscoitos, Massas Alimentícias, Pães e Bolos Industrializados (Abimapi), Claudio Zanão, o Brasil consome mais ou menos 10 milhões de toneladas de farinha de trigo por ano, das quais apenas metade é de produção nacional. E a farinha nacional não pode ser usada sozinha. Considerada de qualidade inferior, ela precisa ser misturada com a estrangeira para o pão sair como a clientela gosta.
A Abimapi, que representa a indústria de praticamente todos os produtos feitos com trigo, calcula, com base nesse último salto do dólar, um acréscimo de 5% no preço oferecido às redes supermercadistas – de fevereiro a março, já tinha ocorrido um aumento de 8%, também por influência do câmbio e dos reajustes nas contas de energia e água. “Cada empresa faz o seu planejamento. Algumas têm produto em estoque e demoram mais para repassar o preço para ganhar mercado. Outras, que comem da mão para a boca, precisam repassar o aumento com mais urgência para não quebrar”, afirma Zanão.
Adubo mais caro – Guardadas as particularidades de cada segmento, o mesmo raciocínio das padarias pode ser aplicado em diversos setores da economia, como os de produtos eletrônicos, remédios, cosméticos e agrícolas. Neste último caso, sobre o qual o dólar tem peso significativo, estão itens onipresentes na mesa dos brasileiros, como milho, arroz, soja, batata, cebola e tomate. Segundo o coordenador do Núcleo Econômico da Confederação Nacional da Indústria e da Pecuária (CNA), Renato Conchon, para o cultivo desses produtos gasta-se metade do orçamento com fungicidas, inseticidas, fertilizantes, sementes e royalties pelas sementes utilizadas no plantio – todos importados de países como Estados Unidos, Canadá e Rússia. “O que o produtor tem feito para fugir do câmbio é procurar um pacote tecnológico (conjunto de itens citados acima) mais barato, de segunda linha, como se fosse o genérico no caso dos remédios”, diz Conchon.
Em relação às carnes, um dos principais itens da pauta de exportações brasileira, os suplementos e medicamentos aplicados nos animais também vêm do exterior. Mas, nesse caso, a pressão que o dólar mais caro exerce sobre o preço é de outra natureza. Com um câmbio mais atrativo para os exportadores, compensa mais para o produtor direcionar a carne para o mercado externo do que ao abastecimento local. Isso diminui a oferta no mercado interno. Assim, com menos carne nas prateleiras – em um fenômeno típico da lei da oferta e da demanda -, o preço sobe. O mesmo ocorre com a matéria-prima básica dos pães e massas de macarrão. “O próprio trigo nacional acaba ficando ‘dolarizado’. O produtor daqui não é bobo. Se estão vendendo lá fora por 100 e ele por cinquenta, ele acaba aumentando também”, diz Zanão, da Abimapi.
“Parece a hiperinflação” – Para os produtos importados que não são insumo – como é o caso de trigo, fertilizantes ou remédio de gado, o impacto é mais forte. Uma lista de produtos que inclui vinhos, peixes, chocolates e balas passou a custar até três vezes mais do que custava apenas poucos meses atrás. Nesses itens, o reajuste é mais forte e muito mais constante. “Nossa tabela tem que mudar praticamente todo mês. Não dá para segurar preço com essa valorização”, diz Adilson Carvalhal Júnior, presidente da Associação Brasileira de Exportadores e Importadores de Alimentos e Bebidas (Abba) e diretor da importadora Casa Flora. “Parece a época da hiperinflação.”
Segundo ele, os produtos importados já tiveram um aumento de 30% em 2015, e nos próximos meses devem sofrer mais um reajuste, de 10%. Itens de alto luxo, como vinhos do Canadá ou da Nova Zelândia, praticamente já sumiram das prateleiras. “Com essa crise, temos apostado em produtos mais baratos. O vinho chileno, por exemplo, tem um ótimo custo-benefício”, diz. Os empresários ainda reclamam da medida editada pelo governo que eleva a tributação sobre vinhos e bebidas quentes, que passa a valer a partir de dezembro. “Isso vai nos pegar justamente no Natal, quando as vendas são maiores. Nós estamos trabalhando para pelo menos adiar essa medida. Já prevemos que os preços podem subir a mais de 30%.”
O dólar mais caro alimenta a inflação – e o combate a ela ocorre sob o pior dos cenários, que soma quadro recessivo e os juros elevados. No primeiro semestre, ela subiu sob o efeito dos reajustes nas contas de energia e água, entre outros fatores. A recente disparada do dólar alimentou essa tendência de alta. No acumulado do ano, o IPCA-15 (prévia da inflação oficial) já chega a 7,78%, o maior resultado para o período desde 2003.
O câmbio é considerado hoje o componente com mais potencial de minar as previsões do governo de fazer a inflação convergir para a meta (atualmente, de 4,5%) em 2016. Segundo Felipe Salles, economista do Itaú, o cálculo-base usado pelos especialistas para apontar a influência do câmbio sobre a inflação é de que a cada salto de 10% no valor da divisa, o IPCA sobe 0,7%. Nas últimas projeções do Itaú, o dólar deve encerrar este ano a 4 reais e 2016, a 4,25 reais.
O paradoxo dos eletrônicos – Paradoxalmente, no setor de eletrônicos, que depende muito de peças e componentes importados, o consumidor deve demorar um pouco mais para sentir o impacto da valorização da moeda americana sobre os preços. Isso ocorre por causa de uma particularidade desse segmento: o ciclo de vida dos produtos. Como esse ciclo é curto, o produto fica mais barato à medida que envelhece, explica Humberto Barbatto, presidente da Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abiee). “Além disso, existem patamares de preços. Cada produto tem uma faixa de preço, que não muda. O nosso produto é movido a inovação, senão ele sai do mercado”, diz. O repasse de preços ocorre no caso dos itens que já vêm prontos do exterior.
O setor de eletrônicos é um dos mais afetados pela crise econômica. Sob um cenário que inclui encarecimento do crédito e aumento do desemprego e da inflação, o consumidor está muito menos disposto a colocar a mão no bolso para comprar produtos mais caros – seja um televisor de última geração, um novo smartphone ou uma geladeira mais sofisticada. Segundo a Abiee, as vendas de telefones celulares devem cair 15% neste ano. Se a projeção se confirmar, será o primeiro recuo da história do segmento. Isso fez com que se registrasse deflação de 2% no preço dos produtos no primeiro semestre deste ano, segundo a entidade.
A alta do dólar também encarece os remédios, que dependem de insumos importados – a maior parte dos princípios ativos dos medicamentos produzidos em território nacional vem de países como Índia, China e Irlanda. Nos últimos doze meses, a despesa da indústria com esse item já cresceu 40%, segundo o presidente do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos (Sindusfarma), Nelson Mussolini. Esse aumento ainda vai demorar a chegar ao consumidor final, argumenta o dirigente, porque o preço dos remédios é regulado pelo governo, que só dá um reajuste por ano. “Qual é a saída?”, pergunta Mussolini. E ele mesmo responde: “Mexer nas condições comerciais. Sabe aqueles descontos que as farmácias costumam dar? Isso vai ficar cada vez mais raro nos próximos trinta a quarenta dias”.
Cenário de incerteza – O quadro é de incerteza na política e na economia, com a onipresente ameaça de abertura do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff e a incógnita sobre o andamento do plano de ajuste fiscal do governo. Essa incerteza tem alimentado a alta do dólar. As intervenções do Banco Central feitas ao longo da última semana jogaram água na fervura da aquecida cotação da moeda, mas, segundo alguns analistas, a estratégia tem eficácia de prazo limitado. “O que o mercado precisa é de uma sinalização clara, mais firme, sobre a crise fiscal. O governo precisa ser mais contundente nas suas ações. Falta informação para o mercado ter tranquilidade”, diz o corretor da SLW João Paulo Correa.
Na visão dos operadores, falta uma definição sobre a postura que o governo vai adotar para enfrentar a crise econômica. Até agora, as únicas medidas de ajuste que passaram no Congresso foram alteradas pelos parlamentares, e sempre tendo como resultado uma economia menor do que a inicialmente prevista. O novo pacote fiscal, que consiste mais em recriar impostos (como a CPMF) do que “cortar na carne”, como o governo propagandeia, ainda não saiu do papel.
Como se já não bastasse a situação doméstica, o cenário externo também aumenta a tensão. Um dia é o dado fraco da indústria chinesa, que mostra que o país está se desacelerando mais rapidamente do que o previsto. No outro, é o aumento do emprego nos EUA, revelando que o país está mais próximo de aumentar sua taxa de juros. Meses atrás, notícias como essas poderiam até mexer com os mercados, mas não com o potencial de pequenas bombas diárias, como ocorre hoje. Até que as nuvens sobre o quadro econômico comecem a se dissipar – e há dúvidas sobre quando isso vai ocorrer -, as cotações do pãozinho e do dólar vão andar muito próximas.
Fonte: veja.abril.com.br