Pensador italiano sustenta a irremovível diferença que existe, entre a lógica da vida pública e a da vida privada.
“Como é louvável um príncipe que mantém a sua palavra e vive com integridade! Assim mesmo, a experiência dos nossos tempos mostra que os príncipes que não mantêm a sua palavra, tiveram muito sucesso em seus governos, e foram capazes, pela astúcia, de confundir as mentes das pessoas. Estes príncipes, que não honraram suas palavras, tiveram em última análise mais sucesso do que os príncipes que fizeram da lealdade o fundamento do seu poder.” “Por isso, um governante prudente não deve manter sua palavra, quando fazê-lo for contra o seu interesse, e, quando as razões que o fizeram comprometê-la não mais existirem. Se os homens fossem bons, este preceito seria errado e condenável, mas, como eles são maus e não honrarão as suas palavras com você, você também não está obrigado a manter a sua para com eles.”
(Maquiavel – O Príncipe Cap. XVIII)
O parágrafo do Príncipe permite entender as razões, pelas quais Maquiavel sustenta a irremovível diferença que existe, entre a lógica da vida pública e a da vida privada.
No núcleo básico do pensamento político de Maquiavel, encontra-se, não apenas uma radical diferença entre as duas esferas, como a presença de uma “alquimia política”, mediante a qual, o que é virtude numa esfera tende a tornar se vício e defeito, quando aplicado em outra esfera da vida.
Lógicas da vida pública e da vida privada são muito diferentes
Tornava-se assim impossível para Maquiavel a existência de uma mesma ética, aplicável com igual validade, à esfera familiar e à esfera política.
Rompia Maquiavel com o pensamento dominante da Idade Média, consolidado de forma genial e definitiva, na Suma Teológica de Sto. Tomás de Aquino e na filosofia escolástica, que, pelos séculos vindouros, seria o “código” da ortodoxia do pensamento cristão.
Ortodoxia que se assentava no princípio conhecido como “A Grande Corrente do Ser”, mediante o qual o universo era penetrado por uma ordem hierárquica que vinha de Deus, na sua cúpula, até o mais inferior dos seres, na sua base.
Com Maquiavel começa então uma análise da política, que se apoia na prática, no comportamento humano como evidenciado na realidade e na história, e não em princípios religiosos e filosóficos, revelados ou racionalmente concebidos. Com Maquiavel rompe-se uma tradição de pensamento político que vinha desde a Grécia Clássica, passando por Roma, e por toda a Idade Média Europeia, cujos pressupostos básicos eram os mesmos.
Para Maquiavel e para os pensadores da “escola realista” da política que viriam a seguir(como Baltasar Gracián, Cardeal Mazzarino, Cardeal Richelieu, Guicciardini, Mandeville), a vida pública possui uma natureza muito diferente da vida privada.
Certos comportamentos totalmente recomendáveis e elogiosos na vida privada, se transpostos para a vida pública, revelam-se catastróficos, e, inversamente, comportamentos censuráveis nas relações privadas, mostram-se necessários e até indispensáveis na vida pública.
Esta contradição entre virtudes e defeitos na vida privada e na vida pública, foi analisada com excepcional objetividade e crueza, por Maquiavel. No Príncipe, ele demonstra como uma virtude da vida privada, se adotada literalmente pelo governante, transforma se no seu oposto na vida política.
O que o “sovina” fizer para o povo será recebido como uma agradável surpresa
O governante liberal, por exemplo, no seu desejo de agradar a todos, gasta mais do que poderia, tendo que depois criar novos impostos e coletá-los avidamente, para cobrir o déficit.
Já o governante “sovina” gera poucas expectativas, e, como dele só se esperava o pior, aquilo que fizer para o povo será sempre recebido como uma agradável surpresa e dobrada satisfação. Além disso, gastando pouco não precisará aumentar os impostos.
Em resumo, a sovinice, um defeito na vida privada, torna-se uma virtude na vida pública, enquanto que a liberalidade, uma virtude na vida privada, transforma o governante num antipático e autoritário arrecadador. Maquiavel usa vários exemplos análogos a este, para justificar a paradoxal relação existente, entre virtudes e defeitos na vida privada e na vida pública.
Qualquer político sabe, se não por teoria por experiência, que esta diferença é real, e, provavelmente, já terá vivido, na sua carreira situações como as descritas por Maquiavel.
Provavelmente constatou que o “comportamento virtuoso” da vida privada, literalmente transposto para a vida pública, produziu efeitos políticos desastrosos, enquanto que outros comportamentos menos virtuosos, foram instrumentais para o sucesso político.
É nessa diferença que reside a ambiguidade da política para o cidadão comum, e a sua tendência de encará-la de maneira negativa e pejorativa.
O cidadão comum continua cultivando os valores da vida privada, acreditando que devam ser os mesmos que devam regular a vida pública, enquanto o político e o governante são forçados a administrar aquela inevitável contradição.
Na vida privada o que se disse ontem tem que ser mantido amanhã, na vida pública a capacidade de mudar de opinião é não só natural como indispensável; na vida privada mudar de partido é uma falta de princípios, na vida pública uma contingência comum; na vida privada a promessa feita é um compromisso moral, na vida pública é um compromisso político, sujeito a variadas condições.
Por não compreender a diferença de natureza que existe entre as duas esferas de vida e, porque nenhum político se atreve a explicá-la ao eleitor ( até porque estaria liquidado politicamente no momento em que o fizesse), permanece esta “brecha” perceptiva entre o eleitor e o político.
O eleitor tende então a desenvolver uma visão pejorativa da atividade política, e uma imagem negativa dos políticos.
Os políticos, por seu lado, tendo que agir levando em conta a lógica própria da esfera pública, precisam, pelo menos, “parecer” aos eleitores que adotam os comportamentos determinados pelos valores da esfera privada. É desta “brecha” estrutural que provêm os preconceitos para com a atividade política e os políticos. É a partir dela que os políticos recorrem às ações e técnicas do marketing político.
Existe uma “brecha” perceptiva que obriga o político a viver duas vidas
É por causa dela que um ataque à honra pessoal do político é tão devastador, podendo liquidar com uma carreira.
É ela que obriga o político a viver duas vidas: com os eleitores cultivando os valores e virtudes da vida privada, por meio dos quais é visto como um deles, e conquista a sua confiança; com os outros políticos e governantes, praticando a “lógica do poder”, sem a qual não sobrevive na selva política.
Esta é uma “brecha” perceptiva que não se elimina.
Seria preciso que os eleitores adquirissem um maior conhecimento, sofisticação e experiência sobre a vida política, para entender o problema como tal, sem preconceito, e compreender melhor as peculiaridades da carreira política, separando com segurança “o joio do trigo”.
Atente-se que não estamos nos referindo ao contraste entre honestidade e desonestidade, entre ética e corrupção.
Mesmo os políticos mais honestos têm que recorrer a expedientes aos quais, como regra, não precisam recorrer na vida privada, para esconder sua estratégia; para se proteger das promessas; para fazer alianças e coalizões sem as quais não conseguirá governar, etc.
A “nobre arte da política” transforma-se então num setor de atividades, onde reina a ambiguidade, estando sempre a um passo da censura pública.
Reconhecer esta diferença não significa, porém, tolerar comportamentos desonestos. Significa apenas admitir que a esfera pública possua uma lógica própria, diferente da vida privada, como alertou Maquiavel há cinco séculos.
Não é preciso ser desonesto para ter sucesso político.
Ao contrário, a desonestidade é um caminho que conduz ao desastre político e pessoal. Por outro lado, um político que queira se comportar na esfera política como se comporta na vida privada, também muito dificilmente logrará sucesso.
Os valores e princípios morais são indispensáveis ao político. São eles que, em última análise, conferem sentido à sua carreira e às suas atividades. Entretanto quem os utiliza, para com eles esgrimir no cotidiano da vida política, não vai longe.
A absoluta intransigência moral – como a ideológica- torna o político demasiado rígido para a intrínseca plasticidade da vida política.
Na política poucas são as vezes em que se decide entre o mal absoluto e o bem absoluto. A maior parte do tempo decide-se sobre o mal menor e o bem possível, matérias que estão longe de possuir aquela característica de escolha apocalíptica.
Fonte: Política para Políticos