Pesquisa divulgada pela ONU em 2004 mostrou que 55% dos entrevistados preferia um governo autoritário a um democrático desde que fossem resolvidos os problemas econômicos.
Os resultados da pesquisa patrocinada pela ONU, divulgada em 2004 e realizada em países da América Latina, na qual 55% dos entrevistados declara preferir um governo autoritário a um democrático, desde que resolvesse os problemas econômicos, ocupou as manchetes da imprensa e perturbou políticos, analistas e governantes.
Manifestações de caráter político são uma rotina na América Latina
Afinal, sofreu-se tanto com as ditaduras no continente, lutou-se tanto pela democracia que, resultados como aquele aparecem como uma profunda demonstração de ingratidão, de incapacidade de perceber e de corretamente valorizar, a enorme, descomunal diferença existente entre viver numa democracia e viver num regime autoritário.
É oportuno alertar, apesar do tempo de divulgação da pesquisa, que este tipo de pensamento não é tão surpreendente. Resultados semelhantes já foram obtidos em outras pesquisas feitas em países da América Latina, em períodos recentes. Além disso, resultados análogos ou tolerância com práticas autoritárias que desvirtuam uma democracia, ocorrem, por igual, em países desenvolvidos.
Na Alemanha da década de 1920, um povo educado e religioso vivendo uma democracia irrepreensível, a República de Weimar, elegeu pelo voto, em 1932, um partido mais que autoritário, totalitário, e entregou seu governo a um brutal ditador chamado de Adolf Hitler.
Nos EUA pós 11 de setembro, o pânico causado pelos atentados terroristas legitimou o governo para impor uma série de restrições aos direitos individuais e à liberdade dos cidadãos sob o argumento de que eram necessários para combater o terrorismo. Aquelas medidas, tão facilmente aceitas quando promulgadas, se tornaram crescentemente controvertidas e contestadas e – acreditam alguns – desvirtuaram profundamente a democracia americana.
O que está em questão, em todos esses casos, entretanto, não é um desprezo pelos valores democráticos, mas sim situações como:
O pavor diante de uma ameaça – terrorismo – que faz com que o povo legitime a suspensão de direitos e liberdades (EUA);
O trauma causado pela crise econômica e pela derrota militar (Alemanha) que estimula governos fortes e postura vingativa no plano internacional;
Uma profunda decepção com o desvirtuamento da democracia e uma conseqüente revolta pessoal com os políticos que se beneficiam deste desvirtuamento (América Latina).
É preciso ir às origens
Um governo democrático é, ao mesmo tempo, um legítimo representante da maioria da população, escolhido na forma legalmente prescrita pela constituição e uma estrutura que deve ser capaz de responder aos principais desafios de sua sociedade e de resolver os problemas mais prementes de sua população, o que não vem ocorrendo nas regiões atingidas pela pesquisa da ONU. Na América Latina, o Estado não vem conseguindo redistribuir renda e melhorar a vida dos mais pobres. Em outras palavras, não basta a um governo democrático representar, é preciso também governar.
Ocorre que qualquer democracia pode fazer uma eleição legítima, mas poucas, muito poucas, possuem uma classe política e uma cidadania capazes de subordinar os interesses imediatistas e as pressões conjunturais aos interesses maiores da sociedade. São muito raros os casos em que uma classe política, e o governo que a lidera, tem a coragem de propor a segmentos de eleitores, ou ao conjunto dos eleitores, sacrifícios no curto prazo, para obter os frutos no médio e longo prazo. Mais raros ainda aqueles casos em que os eleitores os entendem, confiam e aceitam. O resultado é uma democracia que representa, mas que não governa.
Interesses da própria classe política geralmente superam os interesses da sociedade
Nestes casos, a prática da democracia encontra-se delimitada por um interdito político absoluto: evitar a impopularidade. Faz-se qualquer concessão e evita-se qualquer decisão que possa provocar impopularidade. Inversamente, se é capaz de aprovar qualquer medida, mesmo as que se revelam prejudiciais no médio prazo, desde que ajudem a fazer votos na próxima eleição.
De concessão em concessão ao imperativo da popularidade, uma democracia, com muita facilidade, se desvirtua no fugaz jogo das aparências de poder, no tráfico de influências, na demagogia fácil, na promessa oportunista, e perde a estima e o respeito da população, especialmente daqueles setores mais pobres que maiores esperanças depositaram no governo que elegeram.
Não deve, pois, surpreender que, na ocasião em que um pesquisador chega à casa de um cidadão para entrevistá-lo, e formula aquela questão sobre sua preferência entre uma democracia que não resolve os problemas sociais e um governo autoritário que governa, 55% prefiram o último.
O problema não está na democracia como forma de governo. O povo a valoriza, a deseja e a pratica da melhor forma que sabe e pode. O problema está na forma desvirtuada como é praticada, com sua obsessiva preocupação com a próxima eleição e sua crônica resistência para governar.
Fonte: Política para Políticos