69 medicamentos estão com estoques zerados na rede pública

20160316011910Pacientes com doenças graves correm risco. Secretaria repassa responsabilidade a fornecedores.

“O meu caso é de vida ou morte. É um absurdo. Se eu não tiver os remédios, morro”. O desabafo é da dona de casa Renata Pain, 33 anos. Desde o dia 1º de março, ela aguarda que os medicamentos de que necessita – Sildenafila e Bosentana – sejam disponibilizados na rede pública. Ela tem hipertensão arterial pulmonar e, por isso, sente falta de ar com recorrência. A doença é grave. Contudo, pelo fato de os remédios estarem em falta, sua médica diminuiu as doses. “Me sinto muito mais cansada agora”, afirma.

Segundo a Secretaria de Saúde (SES), 69 medicamentos estão com estoques zerados na rede pública. No total, são 850 remédios oferecidos gratuitamente à população. A pasta destacou que “todos esses itens estão com processo de aquisição em andamento”. Ela não citou quais são os produtos em falta.

Por telefone, no entanto, o gerente de Programação de Medicamentos do órgão, Emmanuel de Oliveira Carneiro, explicou que, hoje, o principal motivo para o déficit das substâncias é o descumprimento do prazo de entrega por parte dos fornecedores.

“A falta para os pacientes não ocorre por ausência de planejamento, porque o planejamento é feito com bastante antecedência”, salienta. “Dentro do processo licitatório, podem ocorrer algumas intercorrências que fazem com que demore um pouco mais de tempo. Por exemplo, a gente pode ter tentativas de licitação que resultam em ‘deserto’, quando nenhum fornecedor tem proposta para aquele medicamento. Podemos ter também ‘fracassos’ por preço. Neste caso, as empresas aparecem, mas fazem cotação a um preço maior do que o estimado pela administração pública”, diz o gerente.

Descumprimento de prazo

Segundo Emmanuel, tais intercorrências podem acontecer em qualquer processo licitatório, não apenas na compra de remédios. “A maioria das licitações dá certo. Porém, hoje, o diagnóstico é de que muitos fornecedores, sob diferentes alegações, não cumprem o prazo de entrega”, explica, dizendo que, quando isso acontece, a Secretaria de Saúde faz a compra emergencial dos itens para garantir o abastecimento à população.

O gerente de Programação apontou que existe um processo para a aquisição. “De forma geral, a compra dos medicamentos segue um rito comum. É obrigação do Estado licitar, e sempre temos processos de licitação em andamento para medicamentos. Ao final do certame, há celebração de uma ata de registro de preços. Uma vez que eu tenho esse contrato, é feita a execução dele, em que a secretaria solicita a entrega. A validade dessa ata é de um ano”, disse.

Dosagem menor piora problemas

Renata Pain, com hipertensão arterial pulmonar, e outros pacientes garantem que a ausência de remédios é recorrente. “Não é a primeira vez. Direto acontece isso, e a minha médica tem que diminuir a dosagem. Normalmente, tomo 80 mg de oito em oito horas do Sildenafila e 125 mg de Bosentana de 12 em 12. Agora, tomo 40 mg do primeiro e 62,5 do segundo, o que é prejudicial, porque me sinto mal, com falta de ar quase o tempo todo”, desabafa. No total, ela ingere 280 comprimidos mensalmente e, segundo a dona de casa, por serem caros, ela não tem condições de comprá-los. Cada um custa, aproximadamente, R$ 3 mil.

Outra paciente, Rita Balota, 39 anos, conta que só tem o Sildenafila para mais uma semana. E o genérico custa, em média, R$ 70. Por dia, ela toma três comprimidos. Cada cartela contém o mesmo número. “Eles (Secretaria de Saúde) não deram previsão. Só dizem que fizeram o pedido. Além disso, como a secretaria deve dinheiro para alguns fornecedores, enquanto não pagar, alguns não serão liberados”, diz a professora. Segundo ela, duas pessoas conhecidas foram internadas devido à ausência da substância: “Ficaram sem oxigênio”.

Em estado vegetativo

Entre os 69 medicamentos em falta na rede pública de saúde estaria uma fórmula nutricional, o Nutrison, único alimento ingerido por pessoas em estado vegetativo. A denúncia é de Josemari Pereira, 54 anos, mãe de Daniele Araújo, 30, que, após sofrer um acidente há três anos, perdeu totalmente a capacidade de responder a estímulos.

“Tudo que ela ingere é por meio da sonda, e ela precisa dessa dieta específica do Nutrison”, explica Josemari, que adiantou sua aposentadoria para cuidar da filha e de seus dois netos. “Ligaram ontem falando que a dieta está disponível, só que só vão mandar na sexta-feira agora. Então, vamos esperar mais ainda”, completa.

No período em que ficou sem o Nutrison, por aproximadamente três meses, a família contou com a ajuda de conhecidos para alimentar Daniele. “Tínhamos reserva porque um paciente faleceu, e enviaram a dieta para nós. Foi a nossa salvação. Chegamos a diminuir a dosagem para não zerar o estoque”, desabafa a dona de casa.

Segundo Josemari, há ainda o problema do chamado “equipo”, um equipamento necessário para a conexão da sonda. O dinheiro para comprar o equipo e os frascos deverá sair do bolso da família. “É impossível aplicarmos a dieta sem esses objetos. Eu uso até entupir para economizar, pois o certo é usar três ou quatro por dia, mas não temos condições. Portanto, uso apenas um”, completa.

A dona de casa conta que o pedido de dietas, frascos e equipo para a aplicação estava em licitação e agora que foi regularizado. “Mesmo assim, falta quase tudo. E não é muito barato, mas não podemos esperar a boa vontade do governo, minha filha precisa se alimentar”, desabafa Josemari.

Fórmula recém-chegada

Questionada, a Secretaria de Saúde informou que a fórmula nutricional Nutrison “teve seus estoques reabastecidos nesta terça-feira (ontem)”. Ainda de acordo com a pasta, “a fórmula será distribuída à população a partir de quarta-feira (hoje), na Central de Nutrição Domiciliar, no SIA, ao lado da Farmácia Central, das 8h às 16h”.

A família de Daniele sofre também com a falta de fraldas, que deveriam ser fornecidas pelo GDF.

Queixas crescem 38% em um ano

As reclamações por falta de medicamentos na rede pública cresceram 38% em um ano. A estatística é da Defensoria Pública de Saúde. Segundo o órgão, em 2014, foram 2.834 atendimentos relacionados ao problema. Em 2015, foram 3.937.

A Defensoria Pública informou que o número de ações por ausência de medicamentos necessários também aumentou. Em 2014, foram 423. No ano passado, 474, um crescimento de 12%. Neste ano, apenas em janeiro, foram 323 atendimentos e 16 ações judiciais.

O órgão não soube indicar quais são os remédios mais solicitados. Porém, no ranking das ações judiciais de 2015, o cenário foi: em primeiro lugar, UTIs, em segundo, medicamentos, e, em terceiro, cirurgias. Tratamentos, consultas e exames ficaram em último na lista de demandas da defensoria.

Investimento

Em nota, a Secretaria de Saúde informou que, de janeiro a março, foram investidos R$ 48 milhões em medicamentos. Em todo o ano passado, apontou a pasta, foram gastos mais de R$ 323 milhões.

A secretaria acrescentou que “diariamente, diversos medicamentos chegam à pasta, e outros ficam zerados, momentaneamente, enquanto há o processo de reabastecimento/entrega por parte dos fornecedores. O número, portanto, oscila de forma rápida de um dia para o outro”.

No entanto, na semana passada, o JBr. denunciou a ausência de medicação para pacientes que sofrem de hipertensão arterial pulmonar. E, segundo a coordenadora do grupo de hipertensão pulmonar de Brasília, Flávia Lima, não é a primeira vez que isso acontece.

“No ano passado, o fornecimento da Bosentana foi irregular e chegou a faltar por quase três meses”, afirmou. Ainda de acordo com a coordenadora, a medicação é essencial para o tratamento dos pacientes, e sua ausência oferece risco morte para os pacientes.

Dificuldades se arrastam

Em maio do ano passado, o governo reconheceu a falta de logística e de organização na Farmácia Central da Secretaria de Saúde, no SIA. Representantes da pasta apontaram que, enquanto faltavam alguns medicamentos e insumos, outros eram comprados em excesso.

“Invasão” em busca de internação

Segundo o Relatório Sistêmico de Fiscalização da Saúde (FiscSaúde), aprovado na semana passada pelo Tribunal de Contas da União (TCU), para os casos de internações hospitalares de média e alta complexidade, o DF apresenta o maior saldo de invasão estadual de todas as unidades da Federação – ou seja, é o que mais atendeu a pacientes de outros estados.

Já para os casos de procedimentos ambulatoriais de alta complexidade – consultas e exames –, segundo o documento, o DF apresenta evasão, ou seja, seus residentes mais procuraram atendimento em outros estados do que o contrário.

Ainda de acordo com o relatório, em 2013, em todo o País, apenas os 40 remédios mais caros custaram R$ 431 milhões – 54% dos recursos totais transferidos aos estados para aquisição de medicamentos excepcionais, dentro do bloco Assistência Farmacêutica. Dados parciais compilados até agosto de 2014 já indicam um aumento desses gastos para R$ 554 milhões.

As regiões Sul e Sudeste concentram 73% das ações judiciais do País por demanda de medicamentos. Já a região Norte foi onde as demandas tiveram menor relevância, com apenas 1%. Decisões que obrigavam a aquisição de medicamentos pelo Ministério da Saúde aumentaram quase 80% entre 2010 e 2013, passando de 5.966 para 10.720. Até outubro de 2014, esse número já era de 11.877.

Saiba mais

A situação da saúde pública no Distrito Federal tem reflexo direto no atendimento nos hospitais públicos da região. Em fevereiro deste ano, o juiz da 6ª Vara de Fazenda Pública condenou o Distrito Federal ao pagamento de R$ 150 mil, a título de danos morais, pela morte de Maria das Mercedes Viturino de Melo, causada em razão de demora e tratamento inadequado em diversas unidades. A decisão, porém, não é definitiva e pode ser objeto de recurso.

Os autores, filhos de Maria, ajuizaram ação de reparação pelos danos morais, pois alegam ter sofrido em razão de demora e falhas nos atendimentos médicos dados à mãe em hospitais da rede pública do DF.

Fonte: Jornal de Brasília

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