Músico fez livro sobre a vida dele e a banda em parceria com historiadores.
Obra aborda política e cultura de 1965 a 1996 e fala de Renato Russo.
Foram necessários 19 anos desde o fim da Legião Urbana para que o público pudesse conhecer a história da banda pela visão de quem fez parte dela. O livro “Dado Villa-Lobos – memórias de um legionário” chega às lojas com a proposta de passar a limpo a trajetória do grupo que colocouBrasília no mapa do rock brasileiro nos anos 1980.
O livro narra a trajetória da banda dos tempos do Aborto Elétrico até a morte de Renato Russo, em 1996. A introdução da obra trata de como Dado recebeu a notícia por um telefonema do médico Saul Bteshe, que acompanhou o cantor por oito anos, às 2h15 daquele 11 de outubro. O guitarrista fala sobre a ida ao Rio de Janeiro, a cremação do artista, o contato com amigos e familiares, o assédio da imprensa.
Ao longo das 256 páginas, Renato figura como personagem principal, muitas vezes mais até do que o próprio Dado. O guitarrista fala da forma com que ele agia, o comportamento explosivo, o processo de criação, os acessos de fúria, os momentos de descontração, a relação com os outros músicos, com a turma e todo o showbizz.
Apesar do gênio de Renato, Dado afirma que nunca pensou em sair da Legião, mesmo nos momentos mais difíceis ao longo dos 13 anos em que esteve no grupo. “Nunca pensei em sair. Renato era daquele jeito, mas a banda tinha vida própria, a gente alimentava aquilo. Havia um respeito entre todos, um queria o bem do outro”, afirmou o guitarrista ao G1.
A ideia de escrever o livro partiu do “historiador, militante trotskista e interessado na trajetória de Dado na Legião”, Felipe Demier, parceiro do guitarrista nas peladas de terça no Rio de Janeiro. “Fui convencido por ele, que é fã da banda e historiador. No começo eu disse que não queria, que não tinha tempo, que não sou escritor, mas ele me sugeriu que a gente escrevesse a ‘seis mãos’. Chamamos o também historiador Romulo Mattos e passamos a registrar meus depoimentos, minhas memórias sobre a Legião, no final de 2012”, disse.
Mais do que a história da banda, o livro relata parte da história do Brasil durante o período, com detalhes sobre ditadura, censura, momento cultural, o surgimento de uma cena nacional e o emarenhado de personagens do início do “rock nacional dos anos 1980”.
“Algumas coisas não estavam claras. Achei que era importante contar a história da banda, em primeira pessoa, fazer um relato da dinâmica, dos ensaios, do processo criativo, enfim, de tudo o que aconteceu comigo e com a Legião entre 1983 e 1996.”
A apresentação da obra traz a explicação de como o músico foi convencido a escrever a obra. Depois de falar sobre o dia da morte de Renato Russo, Dado conta sua história, seus primeiros anos em Bruxelas, onde nasceu em 29 de junho de 1965, em Belgrado, na então Iugoslávia, em Montevidéu, em Paris, no Rio de Janeiro e em Brasília, onde chegou pela primeira vez aos 6 anos, em 1971.
Lançamento
“Memórias de um legionário” foi apresentado ao público de Brasília em um show na última sexta-feira (22) no qual Dado se apresentou ao lado de mais dois músicos, na praça de alimentação do Venâncio Shopping, na Asa Sul. Inicialmente, a ideia era intercalar as canções com conversas com o público, contando histórias, curiosidades e detalhes da vida do guitarrista nos tempos da banda.
(Foto: André Zímmerer/Divulgação)
A expectativa era receber um público de 300 pessoas, mas mais de 1 mil estiveram no local, segundo a organização. O repertório teve sucessos da Legião, como “Ainda é cedo”,”Há tempos”, “Teatro dos vampiros”, “Giz” e “Eu sei”, uma música que Dado fez para o filho, Nicolau, e “Tudo que vai”, composição de Dado, Tony Platão e Alvim L que foi suceso com o Capital Inicial.
Memórias de um legionário” (Foto: Reprodução)
O músico não tocou a mais pedida pelo público, “Faroeste caboclo”, mas nem precisava cantar canções como “Quase sem querer”, “Geração Coca-Coca”, “Tempo perdido” e “Que país é este”. Ainda durante a apresentação, a plateia formou a fila para conseguir um autógrafo do ídolo.
Embrião
Antes de falar sobre histórias que viveu ao lado de Renato Russo, Renato Rocha (o Negrete) e Bonfá, Dado conta os primeiros contatos com a música, as pessoas que conheceu na capital e a convivência com os outros filhos de diplomatas, os “itamaratecas”, entre eles o vocalista do Capital Inicial Dinho Ouro Preto. Foi Dinho quem apresentou Led Zeppelin para o futuro guitarrista da Legião, que na época estava mais interessado em disco music.
Em 1981, Dado, Dinho e uma turma entediada sob os pilotis de um bloco residencial avistaram “quatro caras com visual punk: cabelos desgrenhados, calça e camiseta rasgadas, patches etc”. O grupo que trazia latas de tinta spray nas mãos escreveu na parede do bloco as letras “AE”.
“Uma semana depois, o Dinho apareceu e falou: ‘cara, descobri o que significa aquela pichação. É uma banda chamada Aborto Elétrico, que está tocando ali no Food’s'”, diz um trecho do livro. Dado e Dinho depois se juntaram aos “punks” e fizeram parte da “turma da colina”.
Sucesso
Segundo Dado, Renato Russo sempre teve formatado na cabeça tudo o que ele queria para a banda. O livro fala, por exemplo, da primeira viagem para a gravação de um compacto no Rio de Janeiro, do quanto os músicos detestaram o material e da participação do produtor Mayrton Bahia para que a banda pudesse ter liberdade criativa.
(Foto: André Zímmerer/Divulgação)
A obra traz detalhes de como a Legião Urbana pavimentou o caminho rumo ao sucesso. Até mesmo quem não é fã da banda pode gostar do material, que consegue traçar um panorama da cultural pop do período em que a banda existiu.
Entre os trabalhos da Legião, o momento em que o grupo gravou e promoveu o disco “Dois” é um dos mais presentes no livro.
Os primeiros hits, a mudança para o Rio, o sucesso de “Faroeste Caboclo”, com seus 159 versos, mais de 9 minutos de duração e alguns palavrões que impediram em um primeiro momento a execução nas rádios, a saída de Negrete, os boatos sobre o fim do grupo em 1987, as gravações de “As quatro estações”, a doença de Renato, os shows com participações de músicos de apoio, os significados de músicas e nomes de álbuns, tudo é abordado, quase que de forma cronológica.
Show no Mané Garrincha
Dado dá sua versão sobre como ocorreu o famoso e trágico show da Legião Urbana no Estádio Mané Garrincha, em 18 de junho de 1988. Na ocasião, uma grande confusão se formou depois que a banda decidiu deixar o palco após 50 minutos de música.
Um fã invadiu o local de apresentação e agarrou o cantor no meio da música “Conexão Amazônica”. Antes, bombinhas e outros objetos foram atirados contra os músicos. O público começou a promover um quebra-quebra e a entrar em confronto com a Polícia Militar. Mais de 50 mil pessoas lotavam o estádio na ocasião. Muitos acabaram entrando sem pegar.
“No livro eu coloco tudo o que aconteceu ali, como estava o astral, a vibração, a expectativa que se gerou, aquela sensação de que estávamos ‘voltando para casa’, o grande público. Ficamos presos no camarim, chegou aquele carregamento de drogas e álcool.”
O fato é abordado em 11 páginas e na contracapa do livro. Um dos trechos diz que houve depredação de ônibus já na rodoviária do Plano Piloto, que o clima já era de tensão.
O depoimento do baterista Fred Melo, ex-Raimundos e atualmente no Autoramas, à revista Bizz, em 2001, está no livro. O músico fala que estranhou a estrutura do local, comparou o som a um “radinho de pilha” e relatou toda a confusão que viu principalmente após a saída da banda do palco.
Na visão de Dado, a confusão não teve relação com a banda, mas com o clima que se criou. “Qualquer atração artísica nacional ou internacional, que pudesse promover tamanha atração de pessoas a um estádio, poderia ter acabado na mesma situação que a gente”, diz um trecho da obra.
a capa de “Que país é este”, em 1987
(Foto: Legião Urbana/Divulgação)
“A verdade é que aquela energia negativa não tinha necessariamente relação com a gente. Ou, se tinha, era apenas porque a Legião atraía multidões. Como eu disse, o nosso repertório, em parte composto para uma banda punk (o Aborto), também contribuía para que os ânimos ficassem exaltados. Acho que aquela merda toda acabou ilustrando um pouco a desigualdade social que havia no Distrito Federal, que o Plano Piloto, privilegiado, contrastava (e ainda contrasta, é claro) com a realidade das cidades-satélites ao redor.”
‘Fora da lista de ‘bonitos’
E outra parte do livro, Dado fala sobre a lenda de que teria entrado para a Legião apenas porque era bonito na visão de Renato Russo. “Não foi por isso. Fazíamos todos parte da mesma turma, a gente estava lá. Por isso ele me chamou. Antes passaram o Paraná, o Ico”, disse ao G1.
No livro, Dado afirma que o jornalista Carlos Marcelo publicou no livro “Renato Russo – o filho da revolução” que havia uma lista com “os nomes dos rapazes da turma, separados em duas categorias: a dos garotos bonitos (‘Cute boys’) e a dos outros (‘The other boys’)”. “O Bonfá foi incluído na primeira, ao lado de outros três garotos (e eu, na segunda, na companhia de quase 30!)”, afirma o guitarrista.
O fim
O livro termina com um relato dos últimos momentos da Legião Urbana, as gravações de “A tempestade ou o livro dos dias”, a briga que teve com Renato por causa da mixagem de uma música, as últimas ações do cantor, da morte dele, dos projetos de Dado e das considerações sobre a importância da banda na vida dele e na música brasileira.
Ele diz que uma parte dele ficou para trás quando a banda acabou, mas que se lembrava dos tempos de grupo com satisfação. “Eu sei o lugar da Legião na minha vida. Fizemos rock. Fizemos história. Não foi tempo perdido.”
Fonte: G1